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Análise: A insanidade de trocar o real pelo virtual

Cada vez mais pessoas se afastam da realidade, se eximem de suas responsabilidades e buscam viver em mundos que não existem

Patricia Lages|Do R7

“Caramba, Patricia, você não tem empregada mesmo? É sério? Faz um vídeo ensinando dicas para manter tudo limpo e organizado. Assisto muitos vídeos de limpeza e arrumação, mas minha casa vive uma bagunça!” Esse foi o comentário de uma seguidora em um vídeo onde conto que não tenho empregada há anos e dou várias dicas do que faço para manter a casa limpa e organizada.

Deixando de lado o fato de que a seguidora perguntou exatamente o que eu havia dito e pediu dicas que eu havia acabado de dar, vamos usar um pouco da imaginação para tentar entender o contexto. Nesse exercício, imagino uma pessoa que se levanta pela manhã – ou seja lá a hora que for – ignora a real situação de sua casa e, em vez de iniciar suas tarefas de lavar, limpar e organizar, acessa o YouTube para assistir outras pessoas lavando, limpando e organizando. Em que mundo isso faz sentido?

Redes sociais: incentivo ao comportamento zumbi com cada vez mais adeptos
Redes sociais: incentivo ao comportamento zumbi com cada vez mais adeptos Redes sociais: incentivo ao comportamento zumbi com cada vez mais adeptos

Minhas redes sociais crescem um pouco a cada dia, de forma modesta e, segundo vários analistas, bem abaixo do que poderia. Mesmo sem que eu solicite, recebo frequentemente conselhos de experts no assunto me orientando a “criar uma personagem” e a mostrar “recortes da minha vida pessoal.” Segundo eles, as pessoas precisam “viver a minha vida” para poderem “sair da realidade delas”. Se eu “abrir câmera” em “momentos estratégicos” e “transformar” meu dia a dia em conteúdo, minhas redes vão “explodir”, garantem.

Explodir? E desde quando isso é bom? Enquanto não entendo porque isso seria positivo, os experts não entendem porque acho isso negativo. “Patricia, eles vão te acompanhar diariamente, vão copiar o que você faz, vão querer ter o que você tem, vão comprar tudo o que você indicar!”, asseguram os gurus das redes sociais. Dizem que eu preciso “engajar para faturar.” Essa, afinal, é a palavra-chave: faturar. E, para isso, vale tudo, inclusive incentivar um comportamento zumbi que a cada dia faz mais adeptos.

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Volto a pensar na seguidora da casa bagunçada. Posso imaginá-la sentada, ao lado de um esfregão, um balde com água e diversos produtos de limpeza. Tudo comprado on-line por indicação de suas influenciadoras favoritas. Sua atenção está totalmente voltada para a tela do celular, pois sua musa da arrumação acaba de postar um vídeo novo e, desta vez, é sobre como deixar a cozinha brilhando. As horas passam e, de vídeo em vídeo, ela almeja ter uma casa igualzinha à da “influencer” do momento, enquanto evita de olhar em volta e ver que tudo continua na mesma. Louça por lavar, fogão por limpar, roupa por passar...

A vida real é muito chata mesmo, ainda mais para quem não tem aquele esfregão de R$ 400 – que faz o mesmo que qualquer outro de R$ 40 – nem aquele robô que varre a casa sozinho, enquanto sobra mais tempo para fazer o que quiser, inclusive, para acessar as redes sociais e viver a vida de alguém que “transforma recortes do dia a dia em conteúdo.”

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Fica cada vez mais difícil compreender como muita gente não consegue perceber que estamos caminhando a passos largos para uma sociedade irracional e que, em vez disso, classifica qualquer insanidade como “novo normal”. Não pode ser normal optar por deixar de viver sob a justificativa de estar buscando uma vida melhor. Não pode ser normal que as pessoas realmente acreditem que recortes de imagens cheias de filtro e produção, pagas por patrocinadores focados em faturar, representam a verdadeira felicidade. Não é normal, não é racional e não é saudável, mas é o que mais se vê. Diante de tudo isso, a pergunta que fica é: onde vamos parar?

Autora

Patricia Lages é autora de 5 best-sellers sobre finanças pessoais e empreendedorismo e do blog Bolsa Blindada. É palestrante internacional e comentarista do JR Dinheiro, no Jornal da Record.

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