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Análise: Ditadura do propósito ilude e aprisiona

Ao contrário do que se prega, conceitos como 'viva o seu propósito' e 'encontre a sua missão' iludem e criam um ciclo vicioso

Patricia Lages|Patricia Lages, do R7

Ditadura do propósito ilude e aprisiona
Ditadura do propósito ilude e aprisiona Ditadura do propósito ilude e aprisiona

Já fui adepta de conceitos baseados na ideia de que cada pessoa tem um propósito de vida, uma missão a ser executada e, portanto, todos temos a tarefa de descobrir a que viemos. Hoje, porém, vejo que o potencial humano está muito além disso e que conceitos como esses limitam a “um” propósito, “uma” missão, “um” objetivo de vida, como se não fosse possível fazer mais nada.

Ideias assim acabam limitando talentos, reduzindo opções e, em muitos casos, enredando as pessoas em teias das quais dificilmente conseguem sair. Comecei a perceber isso em rodadas de mentoria financeira para mulheres empreendedoras que, apesar de terem ótimas intenções em seus negócios, se viam aprisionadas em atividades que consumiam todo seu tempo e energia, mas que nem sequer traziam lucro. A maioria delas, aliás, estava bastante endividada, tudo em nome do tal “propósito”.

Por acreditarem no conceito de que seu trabalho é a sua missão de vida, muitas se desdobram para atender às demandas mais absurdas e sem sentido vindas de clientes que, igualmente, projetam expectativas hiperbólicas sobre situações corriqueiras. “Minha cliente ‘precisa’ de mim, sabe? Se eu não atender o WhatsApp a hora que for, ela entra em parafuso, não dorme e eu me sinto culpada. Meu marido fica nervoso quando atendo depois da meia-noite, ele não entende a minha missão!”

Esse relato não é de uma psicóloga ou psiquiatra atendendo uma paciente em crise, mas sim, de uma confeiteira contratada para fazer um bolo de casamento. A cada “novo insight” da cliente, a empreendedora precisava preparar uma nova ilustração, comprar mais ingredientes, marcar outra sessão de degustação – para os noivos, os pais e as madrinhas – e, claro, sem mudar o orçamento, pois “o mais importante é realizar o sonho da cliente” que, segundo a confeiteira “quando isso acontece, sei estou ‘no centro’ do meu propósito!”

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Para além dos prejuízos financeiros – sempre justificados com a promessa de que os próximos clientes vão compensar as perdas anteriores – muitas empreendedoras negligenciam o casamento, os filhos, seu descanso e até mesmo a própria saúde. E não é incomum receber nas mentorias mulheres que mal se pentearam antes de sair de casa e que parecem ainda estar de pijama. Elas não têm tempo para pensar em roupa e maquiagem, pois esse tipo de coisa é para as fúteis, aquelas que ainda não encontraram sua missão neste mundo...

A ditadura do propósito exige altos sacrifícios em diversas áreas da vida com o objetivo de manter o foco – a qualquer preço – em uma única coisa, como se, sem ela, nada mais fizesse sentido. São prisões que não precisam de grades ou guardas, pois se apoderam da mente das pessoas gerando um ciclo vicioso de dentro para fora.

Não deveríamos aceitar esse tipo de ilusão pueril que coloca coisas comuns em um pedestal, elevando-as ao status de missão, propósito e único objetivo de vida, enquanto desmerece o que é realmente importante, como família, saúde e segurança financeira. É preciso repensar conceitos para não ter de lidar com arrependimentos.

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