Algumas décadas atrás, a emissora de televisão na qual eu trabalhava abriu uma vaga de emprego em nosso departamento. Abarrotadas de trabalho que estávamos, eu e minha assistente ficamos ansiosas pela chegada de mais uma pessoa. Porém, a ideia do nosso diretor era contratar alguém sem experiência em TV, para não vir com “vícios”. Portanto, nós teríamos o trabalho de treiná-la do zero, antes de obtermos a ajuda de que tanto necessitávamos.
Foi assim que Júlia (nome fictício) chegou à área comercial, onde tínhamos que bater metas cada vez mais altas e ainda aguentarmos firmes as cobranças por resultados. No início, Júlia era atenta, muito bem disposta e aprendia rápido. Era grata pela oportunidade de ter um bom salário, mesmo sem saber quase nada e não fazia cerimônia em nos agradecer todo santo dia por ensiná-la.
Socialismo: críticas ao sistema e benesses que caem do céu
Joel Santana Joelfotos/PixabayNossa “Ju” era aquele tipo de pessoa que trabalha sério, mas que consegue fazer piada com tudo, deixando o clima mais leve mesmo com toda pressão. Em pouco tempo ela havia conquistado os clientes, os apresentadores, nossos superiores e até o pessoal de outros departamentos.
Depois de alguns meses atendendo clientes menores, Júlia passou a ser testada em reuniões com grandes patrocinadores, nas quais se saiu muito bem. Todos estávamos satisfeitos por termos encontrado alguém que efetivamente trazia bons resultados e que tinha tudo para galgar posições mais altas dentro da emissora. E assim foi.
Em menos de um ano, Júlia já ganhava mais do que a assistente que a treinou e, no ano seguinte, por não haver um cargo mais alto do que o meu no departamento, convenceu a direção a criar uma função especial para ela, cujo salário ultrapassou nosso teto. Por mais que parecesse injusto, reconhecíamos que Júlia tinha talento para convencer as pessoas, que realmente se esforçava no trabalho e que cada um deve ser remunerado de acordo com os méritos que possui.
Mas, mesmo tendo seus esforços reconhecidos e uma ótima remuneração, Júlia começou a achar altas demais as comissões sobre publicidade que nossos vendedores recebiam e também passou a criticar os generosos salários dos apresentadores. Aos poucos, sua disposição foi sendo substituída por uma má vontade que irritava a todos e suas frases bem-humoradas se tornaram reclamações.
A maior crítica de Júlia era sobre a desigualdade salarial que havia na empresa. “Como pode uma faxineira que trabalha duro oito horas por dia e passa duas horas numa condução horrível receber pouco mais de um salário mínimo, enquanto um apresentador chega aqui de carrão e segurança e recebe seis dígitos para trabalhar uma ou duas horinhas?”, questionava ela.
Tentando explicar o óbvio, eu dizia que cada um recebe de acordo com o que produz: “Os vendedores têm ótimas comissões quando – e se – conseguem fazer boas vendas e o apresentador recebe seis dígitos por mês porque garante uma audiência que traz milhões de reais em patrocínio, o que permite que a emissora pague o salário de todos nós, incluindo a faxineira.”
Mas o ressentimento que Júlia passou a alimentar contra a meritocracia não permitia que ela percebesse que ela mesma havia se beneficiado com o sistema. Não fosse o reconhecimento de seus próprios méritos, ela não desfrutaria das regalias que seu excelente salário trouxe.
Júlia trocou suas calças jeans e camisetas de malha por tailleurs bem cortados, suas bolsas sintéticas por couro legítimo, colocou o filho em escola particular e comprou um carro bacana. Porém, a cada dia que passava, suas críticas contra “o sistema” só aumentavam, a ponto de ela se posicionar abertamente contra as políticas da empresa e exigir “justiça” para todos.
Tornou-se tão pesado o convívio com Júlia, que nossos superiores a orientaram a sair de férias, descansar e colocar a cabeça no lugar para não acabar perdendo o emprego. Ela, que ainda não havia desfrutado desse direito, acatou a decisão e ficou trinta dias longe da empresa. Mas, para a surpresa de todos, ela voltou ainda mais revoltada.
Júlia havia passado quatro semanas ótimas em casa, sem qualquer preocupação com metas, sem pressões por resultado e sem ver as “injustiças que a emissora fazia com seus funcionários menos qualificados”. Nesse período, ela – que tinha recebido um salário adiantado e mais um terço de bônus – redecorou o apartamento, encomendou um closet maior para que suas roupas chiques não ficassem amassadas e supervisionou de perto o trabalho da empregada que, segundo Júlia, era excelente, mas só fazia as coisas direito se alguém ficasse em cima.
A questão era, como voltar ao trabalho depois de ter vivido aquele mês perfeito? Para Júlia, era daquela forma que todos deveriam viver: sem pressões, com dinheiro no bolso, visitando lojas o dia todo, coordenando a montagem de seus closets e estalando os dedos para alguma empregada fazer suas vontades. A dedicação ao trabalho tantas horas por dia já não fazia mais nenhum sentido para ela, era simplesmente ridículo.
Fazendo de tudo para ser demitida e “receber seus direitos”, Júlia finalmente conseguiu o que queria. Por mais que ainda gostássemos muito dela, não dava mais para manter alguém diariamente incitando os funcionários, tratando mal os superiores, desdenhando dos apresentadores e espantando os clientes.
Ao voltar do RH comemorando sua demissão, constatamos pela última vez, e sem nenhuma satisfação, uma Júlia totalmente diferente da que havíamos convivido por quase dois anos. Arrumando seus pertences para deixar a empresa, ela dizia que estava saindo em “grande estilo” e que ia viver uma vida que nós não tínhamos coragem para viver. Ela ia desfrutar de tudo o que havia conquistado, enquanto nós não passávamos de “baba-ovos” de exploradores.
Passado não muito tempo, soubemos que, infelizmente, ela estava sem dinheiro, que teve de demitir a empregada (a quem não conseguiu pagar “seus direitos”), havia voltado a morar com a mãe e estava vendendo o carro para tentar manter o filho na escola particular. Seu closet dos sonhos havia ficado no apartamento alugado e ela não tinha mais onde ir com suas roupas chiques.
Esse é o problema do socialismo: as pessoas acreditam sinceramente que as coisas caem do céu, ou seja, que alguém tem o dever de bancar todas as benesses que o trabalho proporciona sem que elas tenham de trabalhar. Os socialistas querem colher os frutos que só o capitalismo pode proporcionar, achando que não é preciso plantar.
Com isso, muitas “Júlias” se perdem em meio a sinalizações de virtudes que elas mesmas não possuem, achando-se vítimas de um sistema que é justamente o que permite que elas sejam protagonistas da própria vida, de acordo com seus talentos.
Que as pessoas possam perceber o quanto esse conceito é falho e finalmente entendam que não existe almoço grátis.
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