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Por que ainda nos sentimos culpadas pela violência do outro?

Caso de mulher que perdoa e beija o namorado depois de levar cinco tiros nos faz, mais uma vez, questionar as agressões e como lidamos com elas

Viva a Vida|Luciana Mastrorosa, do R7

Vítima pediu ao juiz para beijar réu em caso de tentativa de feminicídio
Vítima pediu ao juiz para beijar réu em caso de tentativa de feminicídio Vítima pediu ao juiz para beijar réu em caso de tentativa de feminicídio

A imagem mostra um casal trocando um beijo romântico: ela segura o rosto dele, olhos fechados, ele a abraça pela cintura. Tudo indica ser uma dupla apaixonada. Mas, basta dar uma olhada na legenda para entender que tem algo errado ali. O texto diz: “vítima beija réu que tentou matá-la com 5 tiros durante júri no Rio Grande do Sul”.

Lendo a reportagem, ficamos sabendo, um pouco estarrecidos, que a mulher, que se chama Micheli, diz “ter perdoado” o namorado, e que foi “ela que o provocou”. Fato é que ele, Lisandro, foi condenado por tentativa de feminicídio e pegou uma pena de 7 anos em regime semiaberto. Detalhe: ela chegou a ser atingida pelos cinco tiros (no total, foram 7 disparos). E agora, segundo Micheli, o plano é se casar com o réu.

Você leu tudo isso e ficou desconfortável? Eu também. Talvez você tenha pensado: “ai, que horror, como ela é capaz de voltar com esse ‘doido’ que atirou nela?” Ou, ainda, lance um comentário machista, naquele seu grupo de amigos no zap, compartilhando a notícia e dizendo: “se ela se sente culpada, é porque mereceu”.

A questão é que nada nessa história é simples. Se olharmos mais de perto, vemos que tem tudo para ser um relacionamento abusivo, cujo final trágico (a morte da moça) só não ocorreu por uma questão de sorte. Afinal, numa relação saudável, mesmo diante de brigas e “provocações”, ninguém saca a arma e sai atirando no amor da sua vida. Ao menos, não deveria.

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Você pode se perguntar: por que ela perdoou o namorado? Porque sentiu culpa, a força motriz que prende muitas vítimas a relacionamentos abusivos. Ao afirmar que ela “o provocou”, dá a entender que a culpa pelo comportamento absurdo do parceiro é, na verdade, dela. E não é. Quem escolheu apontar a arma para Micheli e disparar SETE vezes foi ele, não ela. A culpa nunca é da vítima, não importa o quanto as pessoas de fora acreditem nisso (inclusive a própria vítima).

Como apontam diversos especialistas e estudiosos do assunto, a coisa mais difícil do mundo é sair de uma relação dessas, que costuma obedecer a um ciclo muito específico de “lua de mel” (onde tudo é perfeito), “tensão” (quando as ofensas, críticas descabidas e controle começam a aparecer) e “explosão” (que pode chegar a violência física com ameaça de morte, como nesse caso).

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Sair do abuso é como fugir de uma prisão com as grades abertas: você pode e quer sair, mas não consegue, não acha que deve, sente culpa. E isso tudo deixa marcas e sequelas que só muito apoio, terapia e auxílio podem ajudar a sanar.

Acredite, eu estive lá. E, mesmo diante de todas as pessoas (amigos, mãe, irmão, colegas) me dizendo que aquele homem (que dizia que eu era o amor da sua vida) me fazia mal, eu permaneci e perdoei uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Fui e voltei, dei chance e recaí, disse que nunca mais e... estava de mãos dadas de novo – me sentia culpada sempre, como se os erros (dele comigo) fossem meus. E ele dizia que eram. Até que percebi, depois de meses de ajuda especializada, que aquilo ali só estava piorando e me afastando de tudo que me era realmente importante. E parti. Com dor e vergonha e culpa, mas parti.

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E por que nós, mulheres, ainda nos sentimos culpadas pela violência do outro? Por que, diante de um comportamento abusivo do companheiro, nos colocamos perguntas como “o que foi que eu fiz desta vez” ou “se tivesse reagido de outra forma, não teria acontecido isso”. Porque, infelizmente, ainda vivemos numa sociedade que culpabiliza a mulher por tudo. Se saiu na rua de minissaia, estava “pedindo” para ser violentada. Se ficou ofendida por um grito do namorado e gritou de volta, é “louca”.

Somos criadas para sermos dóceis, compreensivas, acolhedoras, amorosas, lindas, excelentes amantes, profissionais impecáveis, bem vestidas, mães incríveis. E, ainda, a perdoar sempre, perdoar tudo. Mesmo que esse “tudo” inclua o namorado algoz que atira sete vezes contra você.

E porque a gente acredita que aquele namorado lindo, aquele homem bom e perfeito, aquele príncipe, vai voltar a ser o que se mostrou no início: um cara legal. Só que isso quase nunca ocorre no relacionamento abusivo e o que vemos são mulheres assumindo uma culpa que não lhes pertence, para salvar a relação, e homens piorando seu comportamento, muitas vezes chegando à violência física e ameaças. Micheli escapou por pouco da morte, mas não escapou da própria culpa. Ainda há tempo, porém. Sempre há.

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